Nossa história poderia ter sido de mais uma cesárea desnecessária se nos
rendêssemos a todos os argumentos que indicavam esse caminho. No entanto,
buscamos informações e trocamos de obstetra na 36ª semana. E conseguimos um
parto humanizado, domiciliar, muito mais especial do que imaginávamos.
Engravidei um mês após eu e o Anderson Roderick decidirmos ter um filho.
Isso foi muito diferente da minha relação anterior, onde passei cinco anos
tentando engravidar e lutando contra os ovários policísticos, tendo conseguido
apenas uma gestação interrompida espontaneamente no segundo mês. Desta vez tudo
foi diferente, a começar pela nova relação: eu tinha 30 anos e ele 19!
Morávamos em Nova Hartz, a 80 Km da capital gaúcha, uma pequena cidade de 20
mil habitantes e sem hospital. Decidimos ter um filho depois de três meses
morando junto. Ele me olhou e me propôs justo numa época em que eu resolvera
parar as pílulas por conta própria! Sempre desejei ter um filho em um momento
em que estivesse muito apaixonada, feliz e serena. E o momento havia chegado!
Em menos de dois meses atrasou o ciclo e fiz o exame. Buscamos o resultado
juntos e quando o abrimos senti minhas pernas trêmulas enquanto ele relatava um
frio na barriga. Saímos dali e compramos um caderno para iniciarmos o relato da
história da vinda do nosso filhote, como um presente para ele mesmo.
Quando procuramos a gineco-obstetra com quem eu fazia meus preventivos
na cidade vizinha, recebemos nosso primeiro puxão de orelha por não termos
buscado orientação médica antes de tentarmos a gravidez. Fiz os exames
necessários para verificar que estava tudo bem e dissemos na consulta seguinte
que pensávamos em ter parto normal. A isso, a médica apenas respondia que era
muito cedo para decidirmos.
Seguimos nossas pesquisas pela internet assistindo e lendo tudo o que
encontrávamos sobre os partos. Cada vez mais nos convencíamos que a natureza
era sábia! Até que, no quinto mês, a agência bancária onde eu trabalha sofreu
um assalto. Era um horário de muito movimento e os asssaltantes entraram
atirando e provocando um pânico geral. Isso contribuiu para que minha pressão
arterial, que sempre fora 12X8, passasse a ter um ligeiro aumento, 14X8, 16X8.
Pronto! A médica havia encontrado a deixa para defender firmemente a cesárea no
meu caso!
A história da pré-eclâmpsia agravou o sentimento de morte que o assalto
provocou desde aquele dia. Um medo de que algo ruim pudesse acontecer e
interromper a gravidez tomou conta de mim. Afinal, bem no fundo, um sentimento
de que eu não merecia a bênção de Deméter parideira me habitava. Eu vinha de
uma família de mulheres "medéias", passionais em suas aventuras
amorosas e pouco cuidadosas com seus filhos. Render-me ao fracasso do meu sonho
de ser uma mulher investida da natureza materna era a tendência natural
considerando a saga dessas mulheres. E em meio a este turbilhão de reflexões
surgiu, antes de completar o sétimo mês de gestação, uma labirintite que me
deixou completamente sem autonomia ao longo de três semanas.
Mas até aqui a idéia do parto normal ainda fazia parte de nossos planos.
Já sabíamos que o nosso filhote era um menino a quem chamamos Dioniso, o nosso
deus menino. Para nós, ele representava a celebração da fertilidade, da alegria
pela vida, e logo escolhemos a sua música: Pequenas coisas, do 14bis. Um dos
trechos, por vezes, reacendia meus propósitos...
O ar da noite - sopro de vida
Me lembrando
O que eu esqueço existir...
No sétimo mês encontramos a lista virtual de discussão do grupo Parto
Nosso! Quanta alegria nos inundou ao encontrarmos pessoas que acreditavam na
natureza feminina! E mais ainda ao descobrir que o parto poderia (e seria
melhor) ser humanizado. Quando chegávamos na consulta rebatendo os argumentos
da médica em relação à cesárea ela se ofendia com nosso postura. Certa vez
despediu-se de nós com outro puxão de orelha: "daqui há pouco vocês
estarão sabendo mais do que eu!". Motivamo-nos a procurar outros médicos
na região para ouvir as opiniões quanto às condições do parto. Todos eram
unânimes na recomendação, apesar de divergirem quanto aos motivos: cesárea
porque não tem hospital perto (não dá tempo de sair atrás de hospital na hora
H), cesárea por ser primípara tardia (31 anos já é velha para um primeiro parto
normal), cesárea porque o bebê parece ter mais de 3,5kg (pode lacerar a
vagina), cesárea porque aparece uma circular na ecografia (o cordão pode
estrangular o bebê na hora do parto), cesárea, cesárea, cesárea...
Na 36ª semana viemos a Porto Alegre consultar e conhecer pessoalmente o
Ricardo Jones, o obstetra ativista do Parto Humanizado e condutor da lista
virtual Parto Nosso. Saímos da consulta repletos de afeto e empoderamento
distribuídos por ele e por sua esposa, a enfermeira-obstetra Zeza. O nosso
sonhado parto seria possível! Marcamos o retorno para dali a 15 dias, mas o
Dioniso resolveu apressar as coisas.
No domingo, 3 de outubro, saímos para comemorar a vitória do nosso
candidato nas eleições municipais de Nova Hartz. Um barrigão enorme de 37
semanas me embalava na alegria das ruas. Foi um dia alegre e tive um sonho
muito especial naquela noite. No sonho, sentia-me muito sensual. Claro que a
carga de ocitocina já estava anunciando a chegada do bebê. E era tanto prazer
percorrendo o corpo, que no meu sonho eu estava deitada no chão, nua e com meu
barrigão, com vários homens na minha volta, me olhando. Eram homens de todas as
etnias, africanos, asiáticos, europeus, indígenas, latinos... e eu sentia tanto
prazer, sentia-me tão sensual, que eu me masturbava enquanto eles me olhavam.
Sentia-me Gaia, reunindo em meu corpo a força da vida, a natureza múltipla da
humanidade, a energia que habita cada semente que se espalha pela terra.
No dia seguinte trabalhei normalmente. Na madrugada, porém, acordei com
um líquido escorrendo pela minha vagina. Chamei pelo Rodrigo. Eram 2 da manhã.
Assustados, ligamos para o Ricardo pedindo orientação. Ele recomendou que
conferíssemos se era líquido aminiótico, percebendo um cheiro que lembrasse
água sanitária. Ao confirmarmos, sugeriu que deitássemos e fóssemos a Porto
Alegre logo pela manhã já que eu não tinha dores. Claro que não fomos dormir!
Dioniso se anunciava com três semanas de antecedência então aproveitamos a
madrugada para organizar tudo. Logo cedo, às 6h saímos para pegar um ônibus de
Nova Hartz à Porto Alegre, chegaríamos por volta das 8h15. Eu já havia perdido
um pouco mais de líquido e sentia contrações que me impulsionavam a me mover,
balançar o corpo, dançar e me espichar. Em momento algum passou pela minha
cabeça ficar contando os segundos das contrações. Eu me desliguei do mundo e só
queria curtir tudo o que sentia. No ônibus, ficava pendurada nos ferros do
forro, onde os passageiros se seguram, me embalando para que o Dioniso se
preparasse para nascer.
Às 9h o Ricardo examinou-nos e verificou que estava tudo bem. Sugeriu
que encontrássemos um local para ficarmos em POA, não seria necessário irmos
para um hospital. Bem, até aqui não disse que o parto domiciliar não tinha sido
formalmente planejado, mas era um devir. Fomos para a casa de uma tia-avó
materna. Chegamos sem avisar e as pessoas se assustaram um pouco. Às 12h
chegaram o Ricardo, a Zeza e a doula Juliana. A partir daqui fiquei
completamente desconectada do mundo. Mergulhei nas sensações e deixei-me
conduzir pelo o que meu corpo anunciava. Confiava nas pessoas que estavam à
minha volta e confiei a elas que cuidassem de todo o resto enquanto eu e o
Dioniso cuidávamos da sua chegada a esse mundo aéreo.
Eu caminhava pela casa, pendurava-me nas grades externas do ar-condicionado,
embalando, dançando, rebolando, tomava chá de canela. Ficava no chuveiro, na
bola suiça, recebia massagens, monitoramento, carinho. Sentia meu corpo vivo,
ativo, em sintonia com aquele ser que ali dentro ainda me habitava. Às 15h, já
estava na cadeira de cócoras, em frente ao espelho, apoiada nos braços do pai
do Dioniso e com a Zeza massageando meu períneo com óleo de amêndoas. Eu podia
ver e tocar os cabelinhos do Dioniso surgindo do meu ventre. Foi quando minha
tia-vó, dona da casa onde eu estava e pra quem tudo aquilo era uma surpresa,
chegou, a mesma tia que conduziu minha mãe ao hospital quando eu estava prestes
a nascer. Ela sentou-se ao meu lado, segurou minha mão e abençoou-nos dizendo
ao Dioniso que ele podia vir, que seria muito bem-vindo naquela casa. Foi então
que às 15h08 daquela ensolarada tarde de primavera, senti uma forte ardência no
entorno da vagina. E a Zeza respondeu-me que era o Círculo de Fogo, e que os
índios acreditam que é sinal de que a alma da criança está entrando no corpo
dela. Nesse instante me pareceu que soltei um urro visceral e senti meu corpo
ser lançado pra trás ao mesmo tempo em que o Dioniso saia de mim num único
impulso. A sua chegada foi brindada com lágrimas e sorrisos, enquanto seu
corpinho se aninhava no meu colo. Ao longe, rodava um dos slides do Ricardo,
com outro parto, e a música do 14 bis:
Foi assim
como ver o mar
a primeira que meus olhos
se viram no teu olhar...
Falar sobre parto não é apenas falar em parto normal ou cesáreo. A idéia
é falar de uma nova relação com a vida que se gera e se faz viva, um olhar
diferente sobre como se chega a este mundo, como recebemos os novos seres
humanos. O estranho disso tudo é que, num país acometido pela miséria, abrir as
pernas para parir é visto como coisa de índio, coisa de pessoa desfavorecida
que não pode ter seu filho com hora marcada e com pose de mulher intacta.
Quando decidi ter o Dioniso era um momento muito especial. Sentia-me
crescida e capaz de cuidar de mim e de outrem. Anos antes, meu percurso de tentativas
e tentativas culminou num medo imenso de não ser capaz de ser uma cuidadora
competente quando me vi grávida. O aborto da época me lançou num turbilhão de
culpa e alívio. Mas o fantasma das mães incompetentes da minha família
continuava a me rondar. Talvez, na época, me faltasse uma canção de vida para
entoar a meu filho.
Dioniso brotou no meu ventre em uma época que me sentia plena, repleta
de mim, carregada de músicas que eu descobria me pertencerem. E foi isso que
ajudou a proclamar: parto normal! Jamais conceberia que minha natureza selvagem
fosse entregue aos caprichos de uma ditadura tecnocrata. Não, não se não fosse
extremamente necessário! Sentia que o parto seria a reconstrução de um EU que
tinha agora autonomia e cumplicidade para comungar com minha alma e meu corpo.
Mas o balde de razões para a cesárea que era despejado em minha cabeça a cada
consulta só me faziam procurar cada vez mais razões para preservar minha
natureza selvagem.
No dia do nascimento do meu filho, as contrações levaram-me a um mar de
sensações intensas, assustadoras, poderosas. E nessas sensações flertei a mim
mesma pelo avesso. Um transe me conduzia aos recantos mais obscuros da minha
mente, onde eu encontraria a criança assustada que sempre se escondera por lá.
A passagem do meu filho lançou meu corpo ao espaço, num êxtase brindado por um
urro visceral, a libertação de uma alma enclausurada que nascia, revivia...
renata... E ainda hoje, quando o peso do mundo deixa-me com o olhar tombado,
procuro por esta alma liberta que sei que vive a me espreitar. Ela apenas
aguarda que eu conceda espaço em meu corpo, em meu coração, para que ela me
habite, por vezes, e me encha de vida novamente. Tanto quanto naquele 5 de
outubro de 2004.
Um abraço!
Um abraço!
Renata Ilha (Porto Alegre RS)
mãe do Dioniso
nascido em um parto humanizado domiciliar05 de outubro de 2004
http://www.4shared.com/file/EIRaxWF_/Dioniso.html