08 junho 2008

Relato de uma luta por um Parto Humanizado


Nossa história poderia ter sido de mais uma cesárea desnecessária se nos rendêssemos a todos os argumentos que indicavam esse caminho. No entanto, buscamos informações e trocamos de obstetra na 36ª semana. E conseguimos um parto humanizado, domiciliar, muito mais especial do que imaginávamos.

Engravidei um mês após eu e o Anderson Roderick decidirmos ter um filho. Isso foi muito diferente da minha relação anterior, onde passei cinco anos tentando engravidar e lutando contra os ovários policísticos, tendo conseguido apenas uma gestação interrompida espontaneamente no segundo mês. Desta vez tudo foi diferente, a começar pela nova relação: eu tinha 30 anos e ele 19! Morávamos em Nova Hartz, a 80 Km da capital gaúcha, uma pequena cidade de 20 mil habitantes e sem hospital. Decidimos ter um filho depois de três meses morando junto. Ele me olhou e me propôs justo numa época em que eu resolvera parar as pílulas por conta própria! Sempre desejei ter um filho em um momento em que estivesse muito apaixonada, feliz e serena. E o momento havia chegado! Em menos de dois meses atrasou o ciclo e fiz o exame. Buscamos o resultado juntos e quando o abrimos senti minhas pernas trêmulas enquanto ele relatava um frio na barriga. Saímos dali e compramos um caderno para iniciarmos o relato da história da vinda do nosso filhote, como um presente para ele mesmo.

Quando procuramos a gineco-obstetra com quem eu fazia meus preventivos na cidade vizinha, recebemos nosso primeiro puxão de orelha por não termos buscado orientação médica antes de tentarmos a gravidez. Fiz os exames necessários para verificar que estava tudo bem e dissemos na consulta seguinte que pensávamos em ter parto normal. A isso, a médica apenas respondia que era muito cedo para decidirmos.

Seguimos nossas pesquisas pela internet assistindo e lendo tudo o que encontrávamos sobre os partos. Cada vez mais nos convencíamos que a natureza era sábia! Até que, no quinto mês, a agência bancária onde eu trabalha sofreu um assalto. Era um horário de muito movimento e os asssaltantes entraram atirando e provocando um pânico geral. Isso contribuiu para que minha pressão arterial, que sempre fora 12X8, passasse a ter um ligeiro aumento, 14X8, 16X8. Pronto! A médica havia encontrado a deixa para defender firmemente a cesárea no meu caso!

A história da pré-eclâmpsia agravou o sentimento de morte que o assalto provocou desde aquele dia. Um medo de que algo ruim pudesse acontecer e interromper a gravidez tomou conta de mim. Afinal, bem no fundo, um sentimento de que eu não merecia a bênção de Deméter parideira me habitava. Eu vinha de uma família de mulheres "medéias", passionais em suas aventuras amorosas e pouco cuidadosas com seus filhos. Render-me ao fracasso do meu sonho de ser uma mulher investida da natureza materna era a tendência natural considerando a saga dessas mulheres. E em meio a este turbilhão de reflexões surgiu, antes de completar o sétimo mês de gestação, uma labirintite que me deixou completamente sem autonomia ao longo de três semanas.

Mas até aqui a idéia do parto normal ainda fazia parte de nossos planos. Já sabíamos que o nosso filhote era um menino a quem chamamos Dioniso, o nosso deus menino. Para nós, ele representava a celebração da fertilidade, da alegria pela vida, e logo escolhemos a sua música: Pequenas coisas, do 14bis. Um dos trechos, por vezes, reacendia meus propósitos...

O ar da noite - sopro de vida

Me lembrando

O que eu esqueço existir...

 

No sétimo mês encontramos a lista virtual de discussão do grupo Parto Nosso! Quanta alegria nos inundou ao encontrarmos pessoas que acreditavam na natureza feminina! E mais ainda ao descobrir que o parto poderia (e seria melhor) ser humanizado. Quando chegávamos na consulta rebatendo os argumentos da médica em relação à cesárea ela se ofendia com nosso postura. Certa vez despediu-se de nós com outro puxão de orelha: "daqui há pouco vocês estarão sabendo mais do que eu!". Motivamo-nos a procurar outros médicos na região para ouvir as opiniões quanto às condições do parto. Todos eram unânimes na recomendação, apesar de divergirem quanto aos motivos: cesárea porque não tem hospital perto (não dá tempo de sair atrás de hospital na hora H), cesárea por ser primípara tardia (31 anos já é velha para um primeiro parto normal), cesárea porque o bebê parece ter mais de 3,5kg (pode lacerar a vagina), cesárea porque aparece uma circular na ecografia (o cordão pode estrangular o bebê na hora do parto), cesárea, cesárea, cesárea...

Na 36ª semana viemos a Porto Alegre consultar e conhecer pessoalmente o Ricardo Jones, o obstetra ativista do Parto Humanizado e condutor da lista virtual Parto Nosso. Saímos da consulta repletos de afeto e empoderamento distribuídos por ele e por sua esposa, a enfermeira-obstetra Zeza. O nosso sonhado parto seria possível! Marcamos o retorno para dali a 15 dias, mas o Dioniso resolveu apressar as coisas.

No domingo, 3 de outubro, saímos para comemorar a vitória do nosso candidato nas eleições municipais de Nova Hartz. Um barrigão enorme de 37 semanas me embalava na alegria das ruas. Foi um dia alegre e tive um sonho muito especial naquela noite. No sonho, sentia-me muito sensual. Claro que a carga de ocitocina já estava anunciando a chegada do bebê. E era tanto prazer percorrendo o corpo, que no meu sonho eu estava deitada no chão, nua e com meu barrigão, com vários homens na minha volta, me olhando. Eram homens de todas as etnias, africanos, asiáticos, europeus, indígenas, latinos... e eu sentia tanto prazer, sentia-me tão sensual, que eu me masturbava enquanto eles me olhavam. Sentia-me Gaia, reunindo em meu corpo a força da vida, a natureza múltipla da humanidade, a energia que habita cada semente que se espalha pela terra.

No dia seguinte trabalhei normalmente. Na madrugada, porém, acordei com um líquido escorrendo pela minha vagina. Chamei pelo Rodrigo. Eram 2 da manhã. Assustados, ligamos para o Ricardo pedindo orientação. Ele recomendou que conferíssemos se era líquido aminiótico, percebendo um cheiro que lembrasse água sanitária. Ao confirmarmos, sugeriu que deitássemos e fóssemos a Porto Alegre logo pela manhã já que eu não tinha dores. Claro que não fomos dormir! Dioniso se anunciava com três semanas de antecedência então aproveitamos a madrugada para organizar tudo. Logo cedo, às 6h saímos para pegar um ônibus de Nova Hartz à Porto Alegre, chegaríamos por volta das 8h15. Eu já havia perdido um pouco mais de líquido e sentia contrações que me impulsionavam a me mover, balançar o corpo, dançar e me espichar. Em momento algum passou pela minha cabeça ficar contando os segundos das contrações. Eu me desliguei do mundo e só queria curtir tudo o que sentia. No ônibus, ficava pendurada nos ferros do forro, onde os passageiros se seguram, me embalando para que o Dioniso se preparasse para nascer.

Às 9h o Ricardo examinou-nos e verificou que estava tudo bem. Sugeriu que encontrássemos um local para ficarmos em POA, não seria necessário irmos para um hospital. Bem, até aqui não disse que o parto domiciliar não tinha sido formalmente planejado, mas era um devir. Fomos para a casa de uma tia-avó materna. Chegamos sem avisar e as pessoas se assustaram um pouco. Às 12h chegaram o Ricardo, a Zeza e a doula Juliana. A partir daqui fiquei completamente desconectada do mundo. Mergulhei nas sensações e deixei-me conduzir pelo o que meu corpo anunciava. Confiava nas pessoas que estavam à minha volta e confiei a elas que cuidassem de todo o resto enquanto eu e o Dioniso cuidávamos da sua chegada a esse mundo aéreo.

Eu caminhava pela casa, pendurava-me nas grades externas do ar-condicionado, embalando, dançando, rebolando, tomava chá de canela. Ficava no chuveiro, na bola suiça, recebia massagens, monitoramento, carinho. Sentia meu corpo vivo, ativo, em sintonia com aquele ser que ali dentro ainda me habitava. Às 15h, já estava na cadeira de cócoras, em frente ao espelho, apoiada nos braços do pai do Dioniso e com a Zeza massageando meu períneo com óleo de amêndoas. Eu podia ver e tocar os cabelinhos do Dioniso surgindo do meu ventre. Foi quando minha tia-vó, dona da casa onde eu estava e pra quem tudo aquilo era uma surpresa, chegou, a mesma tia que conduziu minha mãe ao hospital quando eu estava prestes a nascer. Ela sentou-se ao meu lado, segurou minha mão e abençoou-nos dizendo ao Dioniso que ele podia vir, que seria muito bem-vindo naquela casa. Foi então que às 15h08 daquela ensolarada tarde de primavera, senti uma forte ardência no entorno da vagina. E a Zeza respondeu-me que era o Círculo de Fogo, e que os índios acreditam que é sinal de que a alma da criança está entrando no corpo dela. Nesse instante me pareceu que soltei um urro visceral e senti meu corpo ser lançado pra trás ao mesmo tempo em que o Dioniso saia de mim num único impulso. A sua chegada foi brindada com lágrimas e sorrisos, enquanto seu corpinho se aninhava no meu colo. Ao longe, rodava um dos slides do Ricardo, com outro parto, e a música do 14 bis:

Foi assim

como ver o mar

a primeira que meus olhos

se viram no teu olhar...

 

Falar sobre parto não é apenas falar em parto normal ou cesáreo. A idéia é falar de uma nova relação com a vida que se gera e se faz viva, um olhar diferente sobre como se chega a este mundo, como recebemos os novos seres humanos. O estranho disso tudo é que, num país acometido pela miséria, abrir as pernas para parir é visto como coisa de índio, coisa de pessoa desfavorecida que não pode ter seu filho com hora marcada e com pose de mulher intacta.

Quando decidi ter o Dioniso era um momento muito especial. Sentia-me crescida e capaz de cuidar de mim e de outrem. Anos antes, meu percurso de tentativas e tentativas culminou num medo imenso de não ser capaz de ser uma cuidadora competente quando me vi grávida. O aborto da época me lançou num turbilhão de culpa e alívio. Mas o fantasma das mães incompetentes da minha família continuava a me rondar. Talvez, na época, me faltasse uma canção de vida para entoar a meu filho.

Dioniso brotou no meu ventre em uma época que me sentia plena, repleta de mim, carregada de músicas que eu descobria me pertencerem. E foi isso que ajudou a proclamar: parto normal! Jamais conceberia que minha natureza selvagem fosse entregue aos caprichos de uma ditadura tecnocrata. Não, não se não fosse extremamente necessário! Sentia que o parto seria a reconstrução de um EU que tinha agora autonomia e cumplicidade para comungar com minha alma e meu corpo. Mas o balde de razões para a cesárea que era despejado em minha cabeça a cada consulta só me faziam procurar cada vez mais razões para preservar minha natureza selvagem.

No dia do nascimento do meu filho, as contrações levaram-me a um mar de sensações intensas, assustadoras, poderosas. E nessas sensações flertei a mim mesma pelo avesso. Um transe me conduzia aos recantos mais obscuros da minha mente, onde eu encontraria a criança assustada que sempre se escondera por lá. A passagem do meu filho lançou meu corpo ao espaço, num êxtase brindado por um urro visceral, a libertação de uma alma enclausurada que nascia, revivia... renata... E ainda hoje, quando o peso do mundo deixa-me com o olhar tombado, procuro por esta alma liberta que sei que vive a me espreitar. Ela apenas aguarda que eu conceda espaço em meu corpo, em meu coração, para que ela me habite, por vezes, e me encha de vida novamente. Tanto quanto naquele 5 de outubro de 2004.

Um abraço!

Renata Ilha (Porto Alegre RS)
mãe do Dioniso
nascido em um parto humanizado domiciliar
05 de outubro de 2004
 
Para ver o slide produzido pelo nosso obstetra-fotógrafo, acesse o seguinte link e baixe o arquivo, que é um aplicativo exe mesmo, para proteção das fotos ;)

http://www.4shared.com/file/EIRaxWF_/Dioniso.html